sábado, 1 de março de 2008

A "Recoleta"



Havia muitas estrelas no céu,naquela noite quente de verão.
Algumas nuvens,mais pareciam uma tela pintada de fresco,com cores de fogo,parecendo querer anunciar o acordar do sol...
A aragem fresca junto ao rio, mal se sentia...
O cheiro a tinta do bote que tinha sido pintado à tardinha,ainda pairava no ar.
O rio espalhava o seu resplandecente no leito, que lhe prestava vassalagem.
Algumas vozes ecoavam vindas da estrada principal.
Provavelmente alguém que vinha do único café que existia na povoação.
Os poucos automóveis, que por ali passavam àquela hora tardia,emitiam o som típico quando se circulava na estrada dos "paralelos"como se dizia.
No extenso lamaçal, onde algumas embarcações aguardavam a chegada dos pescadores, o contraste de cores era notório,com as águas tranquilas do mondego.
Um batel passou carregado de sal, vindo de uma da salinas do sul.
A agilidade dos dois homens, que se movimentavam em sentidos opostos com grandes varas em cima do batel,mais parecia um bailado de amor...
Quando se cruzavam a meio caminho,viam-se as suas silhuetas dentro do sol...que tinha decidido nascer outra vez...

Era um espectáculo fantástico,ao vivo recheado de todos os ingredientes necessários para desfrutar desse momento único. 
Ao longe por debaixo da ponte dos arcos,o batel desaparecia...como aparecera.
Na outra margem a "coroa da burra",começava a esperguiçar-se, e expulsava os últimos lençóis de água que acareciavam seu corpo.
Era a mãe de muita gente, já há alguns anos para cá, sobretudo na apanha do berbigão.
Nessa madrugada dos anos sessenta,famílias inteiras atravessavam o rio de bote a remos.
Eram às dezenas,pais e filhos com enxadas e ancinhos,e às vezes de mãos nuas à procura do pão espalhado na ilhota,que a baixa-mar proporcionava...
Os de mais tenra idade,com os seus seis,talvez sete anitos,apanhavam os burriés entre o limo e a lama.
Marisco muito apetecido...que depois se vendia na figueira, no mercado e cafés.
À beira-rio o Manel já tinha regressado com o bote do pai carregado de sacos de berbigão.
Foi ao armazém do Pinto, e fez rapidamente o negócio da venda como era habitual.
O suor,corria e molhava-he a testa, e era por momentos travado nas sobrecelhas,e depois entrava-lhe nos olhos verdes-azuis cor de mar.
A camisa entreaberta mostrava rios de transpiração...
Já estava a entardecer...ele exausto, só pensava na Rosa,a sua apaixonada. 
Era o seu primeiro amor,desde os tempos da escola primária, onde deram o seu primeiro beijo.
Ela morava na cova,ele era da gala...era um amor proíbido derivado,a uma guerra entre famílias.
Já se tinham encontrado e dançaram juntos na matiné da gala. 
A notícia já andava de boca em boca, que eles namoravam.
O ti Zé,homem rude,com muitas viagens do "bacalhau" já tinha avisado a filha,que não a queria ver com esse rapaz,-"ai dele se tocasse na minha filha "- dizia a quem o quizesse ouvir,enquanto bebia um "pirata" na taberna junto à estrada.
O Manel sabia de tudo isso,mas a Rosa não lhe saía da cabeça.
Ela era a moça mais linda da terra,olhos de mel,castanhos,lábios como as pétulas de uma flor semi-aberta.

E o seu sorriso...como quem já não quer,mas sempre espera,era misterioso,algo inocente.
Faces rosadas,cabelo de trigo solto,liso,por vezes agarrado atrás com um travessão.
Então o seu andar de menina mulher,com aquele corpo tão atraente...deixavam-no louco.
Quando ela vinha à gala com a mãe ajudar o pai na borda do rio,o Manel com um sorriso tímido,disfarçado e olhar profundo,mostrava-lhe o quanto a amava...
Ela retorquia da mesma forma.
Era um momento mágico de segundos,em que o tempo parecia ter parado para ambos...até que uma varina passou, e o encanto quebrou...

A "recoleta" do pai da Rosa ficava mesmo ao lado da sua.
Às vezes passava horas sentado junto à porta,com a chave na mão,na esperança de ver a sua amada.
Era com ela que um dia queria casar...
Com o olhar fixado nos degraus,conseguia ver um filme,onde ela era a principal protagonista.
Eram cenas de uma paixão ardente,sem regras de dois corpos desejosos de amor...fantasias de um amor proíbido de dois jovens adolescentes.
Os seus pensamentos foram roubados por vários foguetes,que anunciavam a festa em honra de S.Pedro,que se realizava nesse fim de semana.
Entrava novamente na "recoleta" do pai,que já fora do avô em tempos mais distantes.
Havia muitas redes penduradas de vários aparelhos,para a pesca da lampreia,sável,assim como algumas peneiras,quando era a época da pesca do meixão.
Algumas varas,estavam penduradas no tecto já há muito tempo.
A um canto alguns remos,com as "forquetas" amarradas,velhos paneiros do bote e da bateira,que o pai possuía.
Ao fundo,com um pouco mais de um metro de altura,uma cama improvisada,com um velho colchão de palha,onde ás vezes o pai descansava os ossos.
Ao lado da cama,por cima de uma caixa do peixe,a pequena máquina de petróleo para fazer o café de cevada.
Ao lado uma grande cafeteira que poucas vezes era lavada
Era preciso dar á bombinha,mas nem sempre acendia,o bico por vezes entupia e o velho fartava-se de resmungar..."que raio de máquina é esta,que tua mãe comprou rapaz ?"
Penduradas também quatro lanternas,mas só duas é que funcionavam,mas o Ti João não se queria desfazer delas, já eram do tempo do seu pai.
Uma velha âncora,por cima das redes,que estavam no chão parecia guardar,todo esse encanto...
De vez em quando ouviam-se novamente os foguetes.
Os enfeites da capela já estavam terminados,cá fora os arcos alinhados uns atrás dos outros no extenso areal branco,que havia em frente da capela.
Ramadas de diferentes árvores serviam de decoração para os mesmos,além de outros objectos relacionados com a vida do mar...do povo da Cova Gala.
Relíquias,como cabaças,rodas de cortiça,esferas de vidro vestidas de rede,boias de salvação de diferentes cores.
A magia da noite,dava uma dimensão superior,quando se acendia a iluminação.
A barraca das farturas já estava em funcionamento,assim como a das bebidas e outras menos relevantes de última hora.
Nos dias de festa,além da procissão no domingo à tarde, o fogo de artíficio, era um dos momentos cruciais para todos, sobretudo para juventude da terra.
Nessa noite apagavam-se todas luzes...para se poder desfrutar do "fogo preso"
As pessoas movimentavam-se pelo pinhal, situado no lado direito perto da capela, à procura de um sítio, para melhor presenciar o espectáculo.
Os jovens com a sua irreverência, em grupos,atiravam gritos de insaciedade.
Tinham mais liberdade naquela noite especial...
Os altifalantes posicionados em pontos estratégicos,espalhavam música para todos os gostos.
Muitos dançavam,bebiam de alegria, outros limitavam-se a olhar ou censurar, foi sempre assim na Cova Gala.
Foi sempre uma festa desejada por todos onde muitos ficavam quase até ao amanhecer...
Ao longe entre a multidão,o Manel espreitava a sua paixão...

Ela, como um farol,c om os seus olhos brilhantes,procurava o seu navio,no imenso mar da noite.
Estava com mais duas amigas, e o primo mais novo, que tinha a tarefa de a guardar...a mãe tinha-lhe dito que ficasse sempre junto ao carlitos.
Já estava impaciente, o nariz perfeito que tinha, torcia-se de nervosismo.
Por momentos olhava a capela toda iluminada,e via o S.Pedrinho lá em cima à janela,
e perguntava-lhe em pensamentos, aonde estava o Manel.
Súbitamente viu o que procurava, seus olhares encontraram-se...e ele deixou o seu no dela, e depois inexplicavelmente desapareceu...

Passados alguns momentos, sentiu uma mão acariciar a sua e o odor inconfundivel do seu corpo.
Seguiu-o sem se despedir de ninguém.
Mais tarde,  já de mão dada, abraçaram-se e beijaram-se profundamente...a meio caminho do destino.
Depressa chegaram à margem do rio.
Em frente, estava a velha "recoleta",envergonhados, olharam os dois para o chão...depois ganharam coragem e decidiram entrar.
Fecharam a porta e abraçaram-se apaixonadamente...
A velha cama, estava mesmo ali ao lado.
Lá fora, havia muitos foguetes no céu,o fogo de artíficio estava no seu auge, toda a povoação usufruía alegremente da festa.
Junto ao rio dois adolescentes, na velha recoleta, experimentavam o prazer e a felicidade do primeiro amor...
Dois corpos nus, sobre o colchão de palha,como um só, indiferentes a tudo amaram-se até ao amanhecer...
A palha espalhada pelo chão antigo...tinha sido a vítima desse grande amor.
Colada aqui e além, nos seus corpos transpirados, naquela noite escaldante...
A cova estava em alvorôço...a Rosa ainda não tinha aparecido,e o carlitos não sabia explicar aonde estava a prima.
Mas isso já era outra estória...
Os primeiros raios de sol,já entravam pelas fendas das tábuas da velha "recoleta",deixando ver tímidamente,o que ali tinha acontecido...
O batel,vindo das salinas do sul,passou mesmo em frente,como sempre áquela hora.

Lentamente,desaparecia por debaixo da ponte dos arcos,encoberta parcialmente pela neblina da madrugada.
Ao longe,o sol espreitava o rio...e dava luz a um novo dia...

João Fidalgo Pimentel -"A recoleta"(em "pedaços de uma vida") -






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O Mar...da Cova.

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Velha Ponte dos Arcos...Ponte da minha infãncia.Tua vida chegou ao fim...mas a tua imagem ficará sempre em mim.Olhas o rio,como quem olha o espelho da vida.Já viste alguém nascer...quem sabe!Não evitas-te que junto a ti alguém morresse.

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